D. António Marcelino fez o balanço dos seus anos de sacerdócio e deixou uma carta de amor à Diocese de Aveiro, no último artigo publicado no semanário diocesano "Correio do Vouga", a 18 de Setembro de 2013:
"Desde que o Vaticano II nos empurrou para uma Igreja fora
de portas e para uma vida de confrontos, sempre senti a necessidade de ler
melhor a realidade e a minha vida. F uma exigência de fidelidade à missão e de
atenção ao que em mim se vai passando. É talvez momento para dar razão desta
minha preocupação. No próximo fim de semana, se Deus mo permitir, completo 83
anos de vida e 38 de bispo. Há três meses somei, com alegria e gratidão, 58 de
padre. Dirá o povo que idades de tal monta, constituem um bonito rol. E eu acho
que assim é.
Não escrevo para narrar nostalgias e muito menos para me
gloriar com o que vivo, nem para me penitenciar pelo que não fiz ou
fiz menos bem. Estas contas tenho de as acertar noutra instância.
Passaram pela minha vida mudanças sociais e
acontecimentos que me foram ensinando a alegrar-me com os estão alegres e a
sofrer com os sofredores. Abriu-se-me um mundo de oportunidades que me
estimulam e me empurram. Sou emigrante desde criança. Doze anos na minha terra,
outros tantos no Seminário, três em Roma, dezoito em Portalegre, pouco mais de
cinco em Lisboa e há perto de trinta e três em Aveiro. Nunca me senti
contrafeito, nem a mais. Gostei de estar onde estive. Aí regresso com uma
alegria serena. Nunca vi que a minha presença fosse incómoda. Não me alvoracei
com honras e encargos Nunca me senti triste ou vencido por não ser reconhecido
ou pelo que não pude fazer ou as circunstâncias me lo vedaram. Vivo
reconciliado com a vida e comigo próprio Sem inimigos. E amigos? Agora, talvez
mais amigos do personagem bispo que fui, do que da pessoa do bispo que sou. De
ontem ou de hoje os verdadeiros amigos não fazem distinções. São amigos.
Tudo isto vem a que propósito? É um testemunho a que a
vida me aconselha. Tenho defeitos e qualidades. Procuro que as limitações me
não levem a desistir e as qualidades me capacitassem para agir melhor e seguir
em frente. É sempre a vida que comanda. Deus faz nela história connosco e, se
deixarmos, faz história de salvação. Tive a graça de viver, como padre novo, o
tempo do imediato ante concílio, do concilio e após concílio. Senti ao vivo a
urgência de uma Igreja outra e do Povo de Deus como o grande obreiro do Reino;
descobri o significado do Colégio Apostólico e da hierarquia como serviço;
acordei mais para o dever de reconhecer e promover os leigos cristãos na sua
dignidade e missão própria, na Igreja e no mundo; tomei consciência de que a
santidade é vocação universal e dever de todos; vi com clareza a condição
normal da Igreja peregrina, evangelizadora e missionária por sua natureza
e sempre em caminho de conversão:; agradeci a visão nova da liturgia, a
descoberta da Palavra de Deus para os cristãos e as comunidades; vivi a
novidade das novas relações da Igreja – Mundo; rejubilei com a abertura
ecuménica e com a declaração sobre a Liberdade Religiosa; agradeci a Deus os
Papas João XXIII pelo seu gesto corajoso, e Paulo VI pela sua lucidez e
coragem…
Tudo isto me foi marcando para um rumo pastoral novo.
Percebi cedo que a sorte do Vaticano II estava na mão dos bispos e dos seus
colaboradores, clérigos e leigos. Procuro, então, que as minhas opções e da
Igreja que sirvo, sejam inspiradas no Vaticano II. Assim desde o dia da
ordenação episcopal, até hoje. Ao chegar a Aveiro, já marcado por lutas do
PREC, encontrei em D Manuel, de que fui coadjutor, um verdadeiro bispo
conciliar. Sempre nos entendemos bem. Falávamos a mesma linguagem e os planos e
projetos pastorais não podiam ter senão uma inspiração, conciliar. Depois,
dei-me por inteiro à promoção das vocações, à formação dos padres, dos leigos,
e dos diáconos e à animação missionária. Procurei atender melhor, com a ajuda
dos novos vigários episcopais, os consagrados, a educação cristã, a pastoral
social, os movimentos laicais, a família, a pastoral geral e a abertura e
diálogo da Igreja diocesana com o mundo. Procuramos, D Manuel e eu, “um só
“como ele gostava de dizer, que as instituições e serviços, então e
depois criados, servissem o ideal conciliar: Casa Diocesana, Instituto Superior
de Ciências Religiosas (ISCRA), Centro Universitário Fé e Cultura (CUFC),
última fase do Stela Maris, recuperação para o património diocesano da antiga
“casa do bispo”, agora sede da Cáritas, Carmelo Cristo Redentor, edifício da
Cúria Diocesana, Colégio Diocesano de Calvão… De cariz e pedagogia conciliar,
realizaram-se, a pedir atenção, o Sínodo Diocesano, o Congresso dos Leigos, os
Dias da Igreja Diocesana, o Fundo Diocesano do Clero… Nada disto surgiu por
acaso. É obra da comunidade diocesana, sob a orientação de quem a servia. Hoje.
o Vaticano II, dada a realidade, clama pela urgência da sua inspiração e
aplicação e da fidelidade ao essencial da missão da Igreja.
Aceite em 2006 a minha resignação, então com 76
anos, optei, por razões teológicas e efetivas normais, continuar na Diocese,
agora como bispo de Aveiro emérito. Colaboro no Tribunal Diocesano, na formação
de leigos e de consagrados, na imprensa diocesana, nas paróquias onde me enviam
ou me chamam… Tenho ainda encargos a nível nacional. Não estou a mais, não faço
sombra a ninguém. Sou irmão sempre disponível para o bispo diocesano, meu
sucessor. Procuro ser memória histórica útil para a Igreja de Aveiro, que
avança no tempo.. Para quem souber teologia e respeitar sentimentos, a minha
opção é percebida e agradecida. Mia Coito põe na boca de um ancião africano
esta palavra clarividente: “O importante não é casa onde moramos, mas onde em
nós a casa mora”. A minha casa mora é o meu coração. Ai a guardo, desde o dia 1
de Fevereiro de 1981, um amor incondicional e irreversível. Este amor chama-se
Diocese de Aveiro."
D. António Marcelino, Bispo Emérito de Aveiro
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