segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

O Padre Miguel Lencastre

Jantar de despedida antes de partir para o Brasil

Falar do Padre Miguel Lencastre é bem difícil, por se tratar duma figura carismática, multifacetada, que não deixava ninguém indiferente.
Quanto ao aspecto espiritual e religioso do Padre Miguel, deixo a pesquisa desses atributos para outros, bem mais abalizados do que eu e que poderão dar o contributo exacto do Ser privilegiado que foi, na sua passagem terrena.
Homem de fé, convém, no entanto, recordar que o Padre Miguel não impunha a ninguém o seu credo, mas a fé imanava dele, naturalmente, pela sua maneira de se dirigir e tratar os outros.
Era Homem capaz de reunir à sua volta e sentar à mesma mesa as pessoas mais díspares, de diferentes crenças religiosas, ou até agnósticos ou ateus.
Tanto se sentia bem com os seus amigos de todos os dias, como com os Repúblicos Kágados, antigos ou actuais, artistas como Zé Penicheiro ou gente ligada ao mar.
Era capaz de recolhimento, mas igualmente alteava a sua voz no lançamento enérgico do grito dos Kágados… Ekeiá…á.
Senhor duma forte personalidade, irradiava uma alegria esfuziante, que a todos contagiava.


2012 - Homenagem póstuma ao Dr. Manuel Gaspar

Para o recordar… para recordar alguém que nos deixou muita saudade, talvez nada melhor que relembrar alguns episódios dessa convivência de 40 anos!
É do conhecimento geral que o Padre Miguel sentia um forte amor à Terra da Gafanha da Nazaré, onde implantou o Movimento de Schoenstatt e onde foi coadjutor e, a partir de 1973, pároco.
Corria o ano de 1973, estava o P. Miguel imbuído do Espírito do Movimento de Schoenstatt, movimento Católico Mariano, de que foi pioneiro em Portugal, quando pensou erguer uma Capelinha a Nossa Senhora. Decidiu-se pela Colónia Agrícola, na Gafanha da Nazaré.
Do silêncio da noite, sobem acordes de guitarra, misturados com o sussurrar da aragem nos pinheiros, e ouvem-se canções em muitas línguas, fazendo lembrar a torre de Babel, mas com a diferença de que todos se entendem, orientados por um comandante, pelo espírito gregário do Miguel. São os estudantes estrangeiros, a que se juntaram portugueses, dum campo de trabalho promovido pelo Padre Miguel, para erguer a Casa de Sião, homenagem ao Padre Joseph Kentenich, a partir duma moradia de colonos abandonada, corria o ano de 1974.
Era um Homem duma força interior extraordinária, que brincava com a própria vida. Quando, há uns anos, fez um transplante de fígado, e nós o questionávamos sobre a sua saúde, abria um sorriso tranquilo e ripostava: “ponham-se a pau, que eu agora tenho um fígado novo!”…
Quando em Novembro de 1973 implementa a Mini-Feira na Paróquia da Gafanha da Nazaré, é uma lufada de ar fresco para todos os paroquianos. Mais ou menos cumpridores dos preceitos religiosos todos colaboram e, semanalmente, cada um dos Lugares da Gafanha se comprometia com a organização do evento: montava a cozinha e as mesas no salão da Igreja e cozinhava as melhores iguarias, suplantando, se possível, a anterior comissão. Eram dezenas de cidadãos que colaboravam e centenas, milhares, que usufruíam duma sã e renovada convivência, orientadas pela mão firme, mas sempre compreensiva do Padre Miguel.
Nem o Governador Civil, ao tempo, o Dr. Vale Guimarães, faltava a estes encontros, num evidente respeito e homenagem ao organizador…


2013 - Homenagem ao Gaspar

E o Padre Miguel estava sempre disponível para apoiar e trabalhar pelo engrandecimento da Gafanha.
13 de Novembro, 1973, terça-feira, 6 da manhã. Ainda meio ensonados, três gafanhões, 2 por nascimento e 1 por adopção rumam a Lisboa, às Construções Escolares, para conseguirem um pré-fabricado para o Ciclo Preparatório da Gafanha da Nazaré, para que as aulas começassem a processar-se.
Um Professor, Fernando Martins, um Médico, Humberto Rocha, que conduzia a viatura e um Padre, Miguel Lencastre.
Na bagagem pouco mais levam que o entusiasmo de jovens de 30 anos que querem ver a sua Terra progredir.
Bendita juventude que luta e acredita em milagres…
E agora, se mo permitem, faço a transcrição, através da elegante prosa do Kágado Casimiro Simões, dum episódio que reuniu três amigos, numa distante e esperançosa noite de 24 de Abril de 1974:
Anos mais tarde, estava à frente da paróquia da Gafanha da Nazaré, concelho de Ílhavo, onde, ainda antes do 25 de Abril, conheceu Humberto Rocha.
Ficaram os dois a saber que, afinal, embora em épocas diferentes, tinham em comum a passagem pela mais antiga república de Coimbra.
Em 1974, na madrugada do 25 de Abril, o padre da Gafanha estava numa paródia, na residência paroquial, com Humberto Rocha e um fervoroso militante comunista, já falecido, conhecido na região por Bichão das Barbas.
Conta o médico Humberto que a noite foi animada.
Bichão tinha jurado não cortar o longo e respeitável apêndice, que lhe cobria o peito, enquanto a ditadura de Salazar e Caetano não fosse derrubada, dando lugar a uma democracia.
Estava o pão chegado à foice.
Atentos ao evoluir da situação militar em Lisboa, ouvindo na rádio o som cifrado de “Grândola, Vila Morena”, Humberto e Miguel puseram mãos à obra com acordo do barbudo antifascista.
Munidos de tesoura, sempre com a bênção do padre irreverente, depressa resgataram o rosto de Bichão da clandestinidade.”.


2013 - Homenagem ao Gaspar

Desde tempos antigos que se celebrava, no Forte da Barra, a Procissão a Nossa senhora dos Navegantes. Com a saída de Directores do Porto que presavam essa tradição e de homens, como o Ferraz, que se esforçavam por a manter, a cerimónia foi perdendo brilho até estiolar.
O Padre Miguel pôs mãos à obra e aí está, ano após ano, em Setembro, uma colorida e fervorosa Procissão pela Ria, desde a Cale-da-Vila até ao Forte, com o esplendor de dezenas, senão centenas, de barcos engalanados em honra de Nossa Senhora.
E mais recentemente, em Junho de 2013 e, infelizmente pela última vez, reunimos os Kágados, com o Padre Miguel, na Homenagem póstuma ao Dr. Manuel Gaspar.
No Santuário de Schoenstatt, na Gafanha da Nazaré, para a missa e depois num restaurante, em Aveiro. Presentes os familiares do Dr. Gaspar, actuais e antigos Kágados (Zé Maria, Zé Luís, Matos, Humberto Rocha, Sílvia, Maria João e tantos outros, num total de 49 presenças). E aí se entoaram os Cânticos da República e foi lançado, alto e bom-som, o grito kagadal… Ekeiá…á.
A felicidade deste convívio estava bem patente em todos nós, mas resplandecia mais na face e na alma do Padre Miguel.
E a lembrar-nos o espírito folgazão e o amor à sua velha República, no dia em que os Kágados estão reunidos para comemorarem o Centenário, o Padre Miguel, da cama do Hospital de S.to António, recomenda-me que lancemos um Ekeiá bem alto, vibrante, de tal maneira que pudesse ouvi-lo.
Não sei se o ouviu… mas que o sentiu tenho a certeza!...
E “se lá no assento etéreo onde subiste / Memória desta vida se consente”, descansa em paz, na certeza de que nunca te esquecerão, os amigos de sempre.

HRocha 

Nota: Agradeço ao Dr. Humberto Rocha, por ter acedido ao pedido de escrever um artigo, sobre o Padre Miguel. Ambos foram "Repúblicos Kágados" em Coimbra.

Paulo

2 comentários:

A. Cravo disse...

Parabéns Dr. Humberto Rocha, por tão bem teres expressado a tua (nossa) admiração e amizade pelo Padre Miguel!...
Apesar de eu ter vivido por perto algumas das peripécias que relatas, relembrei com saudade, situações que deixaram as suas marcas, em todos aqueles que eramos amigos do Padre Miguel Lencastre.
Que Deus o tenha em Sua Graça!

Fernando Martins disse...

Foi muito saboroso ler esta fiel evocação do nosso Padre Miguel feita pelo comum amigo Humberto Rocha. Sei de muitas outras vivências com tanta gente que se identificou humana e espiritualmente com o Padre Miguel e que merecem ser registadas. Depois de nos habituarmos à sua partida para junto de Deus teremos de pôr mãos à obra. E eu terei muito gosto em alinhar.

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