Éramos soldados-cadetes a frequentar o curso para oficiais milicianos e por
lá passamos, em conjunto, as agruras, para quem não é da região, do clima do
Alentejo (calor de desmaiar e frio de rachar), e vencendo as dificuldades
próprias do curso lá saímos com o posto de Aspirante a Oficial Miliciano.
Mas o Miguel não era fácil de se submeter às rígidas normas militares e era
um dos mais irreverentes, encontrando saídas inesperadas para algumas situações
que ofereciam riscos se fossem detetadas. Era um gosto vê-lo a planear as suas
"manobras táticas" e foi um gozo quando, na récita que organizamos
para a festa de encerramento do curso, ele e mais uns tantos se apresentaram
como as "mais delicadas e elegantes bailarinas de um ballet russo
contratado para aquela récita".
Em tempo, como estudante de Coimbra de capa e
batina, viveu uma situação engraçada aqui em Albergaria-a-Velha, pois, pedindo
com um outro colega boleia na Estrada Nacional n.°1, na proximidade da Branca e
sob chuva intensa, foram atendidos por um automobilista que perante a situação
os levou para a Casa Alameda, onde jantaram e dormiram. No dia seguinte,
manifestaram interesse em agradecer ao senhor que tudo tinha pago e que devia
ser um viajante de alguma empresa e ficaram estupefactos quando souberam que o
benemérito era o médico Dr. Flausino Correia, a quem foram agradecer e convidar
para participar no "Centenário da República" a que pertenciam.
Passados dias, tendo o Dr. Flausino Correia perguntado se poderia levar
mais dois antigos académicos e um leitão assado e qual o traje para a
cerimónia, veio a resposta: "Pode trazer os académicos com traje de
passeio mas o leitão pode vir nu". (Não posso garantir mas esta resposta
teve, de certo, dedo do Miguel.)
Entretanto, num dia de agosto, participando na missa que tinha lugar ao ar
livre, na Praia da Barra, o padre que presidia deixou-me surpreso porque não me
era estranho, mas a sua pronúncia de brasileiro levantava-me dúvidas,
eliminadas quando, após a bênção, desceu do altar e veio-me abraçar. Tinha
reencontrado o Miguel e logo ali o convidei para vir a Albergaria passar um
serão connosco. Assim se verificou e fizemos-lhe a surpresa de também convidar
o Dr. Flausino Correia e esposa e ali ficamos a conhecer outras facetas do
percurso do Padre Miguel que usava o relógio de pulso voltado para baixo
porque, como dizia... "é um símbolo da alteração da minha vida pois rodou
180 graus".
Do pouco que vivi ligado ao Miguel o que mais me impressionou foi o ter
encontrado em Lisboa um nosso camarada de armas e este, à mesa do café, com um
ar de muita preocupação, me ter dito: "Sabes como sou amigo do Miguel e
ontem estive com ele e perante o que me confidenciou já decidi: vou entrar em
contacto com a família e dizer-lhes que o Miguel não está bom da cabeça".
Perante a minha exclamação de surpresa e respetiva pergunta do porquê de
tal decisão, a resposta veio seca: "Oh pá, ele quer ser padre... o
Miguel!"
Quis ser... e foi.
Insondáveis e inesperados são os caminhos do Senhor.
Adeus, amigo. Descansa em Paz.
Nota: Texto de José António da Piedade Laranjeira
Fotos: no livro "Um sim decisivo"
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