Jantar de despedida antes de partir para o Brasil
Falar
do Padre Miguel Lencastre é bem difícil, por se tratar duma figura
carismática, multifacetada, que não deixava ninguém indiferente.
Quanto
ao aspecto espiritual e religioso do Padre Miguel, deixo a pesquisa
desses atributos para outros, bem mais abalizados do que eu e que
poderão dar o contributo exacto do Ser privilegiado que foi, na sua
passagem terrena.
Homem
de fé, convém, no entanto, recordar que o Padre Miguel não impunha
a ninguém o seu credo, mas a fé imanava dele, naturalmente, pela
sua maneira de se dirigir e tratar os outros.
Era
Homem capaz de reunir à sua volta e sentar à mesma mesa as pessoas
mais díspares, de diferentes crenças religiosas, ou até agnósticos
ou ateus.
Tanto
se sentia bem com os seus amigos de todos os dias, como com os
Repúblicos Kágados, antigos ou actuais, artistas como Zé
Penicheiro ou gente ligada ao mar.
Era
capaz de recolhimento, mas igualmente alteava a sua voz no lançamento
enérgico do grito dos Kágados… Ekeiá…á.
Senhor
duma forte personalidade, irradiava uma alegria esfuziante, que a
todos contagiava.
2012 - Homenagem póstuma ao Dr. Manuel Gaspar
Para
o recordar… para recordar alguém que nos deixou muita saudade,
talvez nada melhor que relembrar alguns episódios dessa convivência
de 40 anos!
É
do conhecimento geral que o Padre Miguel sentia um forte amor à
Terra da Gafanha da Nazaré, onde implantou o Movimento de
Schoenstatt e onde foi coadjutor e, a partir de 1973, pároco.
Corria
o ano de 1973, estava o P. Miguel imbuído do Espírito do Movimento
de Schoenstatt, movimento Católico Mariano, de que foi pioneiro em
Portugal, quando pensou erguer uma Capelinha a Nossa Senhora.
Decidiu-se pela Colónia Agrícola, na Gafanha da Nazaré.
Do
silêncio da noite, sobem acordes de guitarra, misturados com o
sussurrar da aragem nos pinheiros, e ouvem-se canções em muitas
línguas, fazendo lembrar a torre de Babel, mas com a diferença de
que todos se entendem, orientados por um comandante, pelo espírito
gregário do Miguel. São os estudantes estrangeiros, a que se
juntaram portugueses, dum campo de trabalho promovido pelo Padre
Miguel, para erguer a Casa de Sião, homenagem ao Padre Joseph
Kentenich, a partir duma moradia de colonos abandonada, corria o ano
de 1974.
Era
um Homem duma força interior extraordinária, que brincava com a
própria vida. Quando, há uns anos, fez um transplante de fígado, e
nós o questionávamos sobre a sua saúde, abria um sorriso tranquilo
e ripostava: “ponham-se a pau, que eu agora tenho um fígado
novo!”…
Quando
em Novembro de 1973 implementa a Mini-Feira na Paróquia da Gafanha
da Nazaré, é uma lufada de ar fresco para todos os paroquianos.
Mais ou menos cumpridores dos preceitos religiosos todos colaboram e,
semanalmente, cada um dos Lugares da Gafanha se comprometia com a
organização do evento: montava a cozinha e as mesas no salão da
Igreja e cozinhava as melhores iguarias, suplantando, se possível, a
anterior comissão. Eram dezenas de cidadãos que colaboravam e
centenas, milhares, que usufruíam duma sã e renovada convivência,
orientadas pela mão firme, mas sempre compreensiva do Padre Miguel.
Nem
o Governador Civil, ao tempo, o Dr. Vale Guimarães, faltava a estes
encontros, num evidente respeito e homenagem ao organizador…
E
o Padre Miguel estava sempre disponível para apoiar e trabalhar pelo
engrandecimento da Gafanha.
2013 - Homenagem ao Gaspar
13
de Novembro, 1973, terça-feira, 6 da manhã. Ainda meio ensonados, três
gafanhões, 2 por nascimento e 1 por adopção rumam a Lisboa, às
Construções Escolares, para conseguirem um pré-fabricado para o
Ciclo Preparatório da Gafanha da Nazaré, para que as aulas
começassem a processar-se.
Um
Professor, Fernando Martins, um Médico, Humberto Rocha, que conduzia
a viatura e um Padre, Miguel Lencastre.
Na
bagagem pouco mais levam que o entusiasmo de jovens de 30 anos que
querem ver a sua Terra progredir.
Bendita
juventude que luta e acredita em milagres…
E
agora, se mo permitem, faço a transcrição, através da elegante
prosa do Kágado Casimiro Simões, dum episódio que reuniu três
amigos, numa distante e esperançosa noite de 24 de Abril de 1974:
“Anos
mais tarde, estava à frente da paróquia da Gafanha da Nazaré,
concelho de Ílhavo, onde, ainda antes do 25 de Abril, conheceu
Humberto Rocha.
Ficaram
os dois a saber que, afinal, embora em épocas diferentes, tinham em
comum a passagem pela mais antiga república de Coimbra.
Em
1974, na madrugada do 25 de Abril, o padre da Gafanha estava numa
paródia, na residência paroquial, com Humberto Rocha e um fervoroso
militante comunista, já falecido, conhecido na região por Bichão
das Barbas.
Conta
o médico Humberto que a noite foi animada.
Bichão
tinha jurado não cortar o longo e respeitável apêndice, que lhe
cobria o peito, enquanto a ditadura de Salazar e Caetano não fosse
derrubada, dando lugar a uma democracia.
Estava
o pão chegado à foice.
Atentos
ao evoluir da situação militar em Lisboa, ouvindo na rádio o som
cifrado de “Grândola, Vila Morena”, Humberto e Miguel puseram
mãos à obra com acordo do barbudo antifascista.
Munidos
de tesoura, sempre com a bênção do padre irreverente, depressa
resgataram o rosto de Bichão da clandestinidade.”.
2013 - Homenagem ao Gaspar
Desde
tempos antigos que se celebrava, no Forte da Barra, a Procissão a
Nossa senhora dos Navegantes. Com a saída de Directores do Porto que
presavam essa tradição e de homens, como o Ferraz, que se
esforçavam por a manter, a cerimónia foi perdendo brilho até
estiolar.
O
Padre Miguel pôs mãos à obra e aí está, ano após ano, em
Setembro, uma colorida e fervorosa Procissão pela Ria, desde a
Cale-da-Vila até ao Forte, com o esplendor de dezenas, senão
centenas, de barcos engalanados em honra de Nossa Senhora.
E
mais recentemente, em Junho de 2013 e, infelizmente pela última vez,
reunimos os Kágados, com o Padre Miguel, na Homenagem póstuma ao
Dr. Manuel Gaspar.
No
Santuário de Schoenstatt, na Gafanha da Nazaré, para a missa e
depois num restaurante, em Aveiro. Presentes os familiares do Dr.
Gaspar, actuais e antigos Kágados (Zé Maria, Zé Luís, Matos,
Humberto Rocha, Sílvia, Maria João e tantos outros, num total de 49
presenças). E aí se entoaram os Cânticos da República e foi
lançado, alto e bom-som, o grito kagadal… Ekeiá…á.
A
felicidade deste convívio estava bem patente em todos nós, mas
resplandecia mais na face e na alma do Padre Miguel.
E
a lembrar-nos o espírito folgazão e o amor à sua velha República,
no dia em que os Kágados estão reunidos para comemorarem o
Centenário, o Padre Miguel, da cama do Hospital de S.to António,
recomenda-me que lancemos um Ekeiá bem alto, vibrante, de tal
maneira que pudesse ouvi-lo.
Não
sei se o ouviu… mas que o sentiu tenho a certeza!...
E
“se lá no assento etéreo onde subiste / Memória desta vida se
consente”, descansa em paz, na certeza de que nunca te esquecerão,
os amigos de sempre.
HRocha
Nota: Agradeço ao Dr. Humberto Rocha, por ter acedido ao pedido de escrever um artigo, sobre o Padre Miguel. Ambos foram "Repúblicos Kágados" em Coimbra.
Paulo
Nota: Agradeço ao Dr. Humberto Rocha, por ter acedido ao pedido de escrever um artigo, sobre o Padre Miguel. Ambos foram "Repúblicos Kágados" em Coimbra.
Paulo
Parabéns Dr. Humberto Rocha, por tão bem teres expressado a tua (nossa) admiração e amizade pelo Padre Miguel!...
ResponderEliminarApesar de eu ter vivido por perto algumas das peripécias que relatas, relembrei com saudade, situações que deixaram as suas marcas, em todos aqueles que eramos amigos do Padre Miguel Lencastre.
Que Deus o tenha em Sua Graça!
Foi muito saboroso ler esta fiel evocação do nosso Padre Miguel feita pelo comum amigo Humberto Rocha. Sei de muitas outras vivências com tanta gente que se identificou humana e espiritualmente com o Padre Miguel e que merecem ser registadas. Depois de nos habituarmos à sua partida para junto de Deus teremos de pôr mãos à obra. E eu terei muito gosto em alinhar.
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